Crónica de Jorge C Ferreira | A Via-Sacra

A Via-Sacra
por Jorge C Ferreira

 

Falar do encanto escondido. Uma folha de um bloco com desenhos de coisas esquecidas. Um falar calado. Um falar traço a traço. A luz e a sombra e a melancolia de uma árvore despida de afectos. Um banco de ripas, muito verdes. Um lugar único e despido. Na relva ninguém se rebola. O chafariz está avariado. A estátua de um poeta. Um cartaz que diz: “É obrigatório o uso de máscara.”

Lembro-me da minha Mãe adorar o Carnaval de Veneza, aquelas máscaras, aquelas sedutoras figuras a surgirem numa ponte, ou no canto de uma praça antiga. Nunca chegou a ir a Veneza a minha querida Mãe. Não sei que máscara escolheria. Sei que ficaria bonita. Acreditamos que a nossa Mãe é sempre a mais bela do mundo.

Outro sonho dela era a Madeira. A beleza única daquela ilha presépio. Aí foi. Veio feliz. O coração a bater desordenadamente. Uma aventura de quem sempre aspirou a pouco. Foi o coração que a traiu. As saudades que eu tenho de ti. Já lá vão tantos anos que te foste embora, nem sei porque estou a escrever isto agora. Talvez porque te sinta quando mais necessito de ti. Talvez por sentir que ainda tomas conta de mim.

A vida é uma caminhada para a morte. A caminhada, depende dos caminhos e dos caminheiros. Quando em pequeno ia à igreja e assistia à Via-Sacra pensava que aquele era um retrato que queriam fazer do nosso caminhar. Depois vi que o deus castigador que me estavam a vender, a existir, só podia ser falso. Só mais tarde entendi que não temos de ter uma vida de sofrimento. Devemos tentar ser felizes e solidários. Estarmos sempre prontos para fazer avançar o mundo. Só assim a vida vale a pena. Ser verdadeiro. Dizer não à hipocrisia. Pegar na mão do outro e fazê-lo sentir a amizade. Se tal for necessário.

Há muita gente que vive numa solidão quase impossível. Gente que não sabe de ninguém que seja seu. Gente que só guarda, numa gaveta especial, chaves de caixões com um número e uma fita preta. O resto são fotos antigas que só chamam a tristeza. Objectos que todos adoraram e agora só quem os tem, toca. Um tocar que traz lembranças. Lembranças de coisas boas e de desgraças. Algumas coisas que ninguém esperava que acontecessem. A doença malvada. A curva inesperada no fim de uma recta que apetecia. Um quinto andar sem elevador num prédio antigo da velha Lisboa.

Entretanto passeiam jovens vestidos de coisas novas nos passeios da vida. Porque assim é a vida. O contraste necessário. A renovação da vida. Os primeiros passos de uma criança e a alegria dos pais. Um banho numa banheira especial, o toalhão turco com capuz, os sais, a água com espuma e a falta de água. Uma intensa incapacidade de compreender tudo. A festa e a fome. Um mercado terrorista que já se provou ser impossível de regular. As tais entidades reguladoras são já parte dos cartéis.

Estamos rodeados de gente doida e sem princípios. Esta é a pior doença do momento. Meninos que, de repente, engrossam a voz e parecem homens. Gente capaz de trair o amigo mais próximo para subir um degrau e ficar à porta do gabinete desejado. É tempo de lhes dizer não. Que o nosso modo de viver é outro.

Vamos ser solidários e não acreditar nos falsos profetas.

«Jorge, estás a ficar farto disto e ainda te acontece alguma.»

Fala da Isaurinda.

«Temos de falar de tudo sem medo, de contar as coisas que são importantes.»

Respondo.

«Pois, eu sei. Conheço-te bem. Sei que tens razão. Também tenho saudades da tua Mãe.»

De novo Isaurinda e vai, uma lágrima no lenço.

 

Jorge C. Ferreira
Define-se a si mesmo como “escrevinhador” . Natural de Lisboa, trabalhou na banca, estando neste momento reformado.
Participou na Antologia Poética luso francófona: A Sombra do Silêncio/À Lombre du Silence;
Participou na Antologia poética Galaico/Portuguesa: Poetas do Reencontro
Publicou a sua primeira obra literária em 2019, “A Volta à Vida À Volta do Mundo” – Poética Editora 2019.

 


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15 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | A Via-Sacra”

  1. Eulália Pereira Coutinho

    A saudade da minha mãe. O colo que sempre nos aconchega. A estrela que nos dá luz.
    Memórias escondidas. Regressam nestes tempos difíceis. Neste tempo em que a máscara esconde as emoções. A máscara que esconde o medo da injustiça, da cobardia, da desigualdade cada vez mais acentuada. O planeta comandado por loucos.
    O que virá para os nossos filhos e netos?
    Obrigada meu amigo, por não calar a injustiça.
    Um grande abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Disse tudo e de forma tão expressiva. Foi bom lê-la. Abraço.

  2. António Feliciano de Oliveira Pereira

    No sótão da vida o arquivo biológico das vivências passadas mas sempre presentes na memória!
    São a riqueza que o pensamento converte em nostalgia!
    Bom texto!
    Um abraço, Jorge!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado António. As nossas gavetas de abrir e fechar. A nossa capacidade de busca. Tudo o que diz. Grande Abraço

  3. Mena Geraldes

    Jorge.
    Nesta crónica eu seria capaz de percecionar um “confessionário”, um baú de memórias e um inegável manifesto.
    No confessionário trazes à vida a tua bela mãe. Sonho e realidade. Carnaval de Veneza e uma ilha quase encantada…Visitada.
    Saudade. Tanta.
    Ao baú das memórias vais buscar a solidão. De quem se afastou da vida e se fechou nessa prisão que podem ser as lembranças.
    A crua doença. A fatídica tristeza que é estar só.
    No manifesto referes a festa e a fome, o terrorismo, os cartéis, a falta de solidariedade e de princípios, esta desumana verdade do mundo em que vivemos, ainda tão imperfeito e desigual….
    Como nos habituaste. Perspicaz, sensível, frontal, arguto e transparente!
    Bem hajas.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena. Como me habituaste uma leitura perfeita e um astuto comentário. Sabe bem ler o qu escreves. Abraço.

  4. Cristina Ferreira

    Mãe. É sempre a ela que regressamos. Nos melhores momentos da nossa vida, nos piores e a tantas e banais vivências da nossa vida. Pois sabemos que só elas têm o sentir que nos entende e conforta.
    Recordo a minha mãe dizer: “Por muito que passamos, pelas piores mortes que sofremos ( e as dela foram mesmo muitas e as piores) quando a nossa mãe morre, nós torna-mo-nos diferentes. E hoje, eu entendo tão bem, o que não entendia em jovem quando a ouvia referir-se à sua mãe.
    A vida vai mudando. Vamos fazendo o nosso caminho. Muitas vezes o cansaço começa a querer tomar conta de nós. E é aí que temos de ir buscar todas a nossas energias, agarrando-nos com todas as nossas forças ao que mais amamos. A quem mais amamos. E não desistir. Ir sempre ao encontro da Luz. Como dizes, tentar ser felizes e solidários, pois só assim a vida faz sentido.
    Abraço grande e terno.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. A nossa Mãe. Acho que os homens andam sempre em busca do útero materno. Eu durmo quase sempre em posição fetal. Bonito o que escreveste. Abraço.

      1. Cristina Ferreira

        E sublime a tua resposta. Mais um abraço, querido mestre.

  5. Teles Ivone Teles

    Tanta verdade diz o teu texto.. Uma época difícil, esta. Uns usam a máscara para esconder o medo. Mas é necessário ter cuidados. Pior que o uso da máscara cirúrgica ( aquela que mais nos resguarda de outros e de nós ) custa o confinamento. Deixarmos de nos movimentar, aproveitando o sol, ou o fresco da aragem. Não podermos abraçar, beijar, nem sequer tocar num amigo. As notícias são desencontradas. Hoje podemos tomar refeições com amigos, mas à distância. E quem pode comer com máscara?. Já me morreram três amigos. Não se pode ser velho com este vírus que parece querer espaço só para os mais novos. As pessoas andam estranhas. Falas da tua Mãe. A minha tinha 16 anos ( a mais velha de 7 irmãos) quando a pandemia de 1918 assolou o país. Morreu uma das irmãs e ela dizia que o mundo mudou . Como irá ser este mundo ode, hoje ,vivemos ? É tal qual escreveste. Falta solidariedade e empatia. A crise económica sobrepõe-se à humanitária. Somos ” coisos ” e não gente. Mas continuaremos a lutar e a acreditar que as nossas utopias se realizarão um dia e que, fraternalmente, nos abraçaremos sem medo.. Dá um beijo à Isaurinda. Para ti, meu Amigo/ Irmão beijinhos gratos pelo que escreveste e sempre nos une sem máscaras.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivnone, minha querida amiga/irmã. Vamo-nos cuidar muito. Não te esqueças que temos Avenidas para encher. Coragem. Grande abraço

  6. Cecília Vicente

    Meu querido amigo,hoje,sinto falta de tanto,e tudo me compensaria para afastar a tristeza que sem querer me visita. Estou a escrever tal qual uma carta para te enviar.
    Sabes que sempre leio as tuas crónicas,nem sempre posso comentar,isso,explicar-te-ei um dia. Um dia,que será outro dia e assim faço por passar o tempo,falas da senhora tua mãe,imagino que fosse também uma uma viajante de sonhos,será que foi ela a dizer-te que um dia irias fazer todas as viagens à volta do mundo já que ela não o pode fazer? Que senhora bonita deve ter sido,também tu és bonito,bonito de afectos para com os amigos,revolucionário pelos teus ideais. Sabes? Lembrei que este ano por causa do tal vírus não foste para o teu reino,aquilo por lá tem estado mal,e agora dizem,que escondem números por causa da economia e do turismo…Aqui,mal por mal lá vamos andando como ò costume,ou então como nossas mães diriam possivelmente: Como Deus quer,estamos na mão de Deus. Meu querido amigo,alonguei esta minha carta para compensar a minha ausência,não leves a mal,nem sempre,nem nunca estou bem,não fosse a esperança e a minha lucidez talvez esquecesse muito,mas,a segunda feira chega com a tua crónica,espero eu que possa estar mais vezes por aqui,nem que seja de passagem.Já quase não tenho papel,dá saudações minhas à Isaurinda,para ti aquele abraço. Assina esta tua sempre amiga: Cecília Vicente

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cecília. Que bom ver-te por aqui. Sempre assertiva. Que bela a carta que me escreveste. Este tempo sem tempo. Nunca perder a esperança. Grande abraço

  7. Isabel Pires

    Também eu tenho saudades da minha mãe. Obrigada pelo belo texto não consigo dizer mais nada. Beijo

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Quase todos temos. Nunca nos cortaram aquele cordão. Disse muito. Abraço

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